Acompanho de perto as consequências do crime da Vale em Brumadinho há dois anos. Faço parte da Comissão Externa da Câmara dos Deputados que é responsável por acompanhar o acordo de reparação, participei da mediação de auxílios emergenciais para a população e tenho trabalhado incansavelmente pela aprovação de um novo marco regulatório da mineração para que um mar de lama não volte a soterrar Minas Gerais.
Nesses dois anos, estive nos territórios atingidos algumas vezes, e o cenário segue desolador: destruição ambiental e de modos de vida, crise econômica e de saúde pública. O adoecimento é físico e mental – só no primeiro ano, o consumo de ansiolíticos aumentou 79% em Brumadinho após o rompimento da barragem, segundo a Secretaria Municipal de Saúde. Foram 270 pessoas mortas, vidas e vizinhanças inteiras apagadas da existência, dezenas de comunidades e ecossistemas em risco e um rio arrasado pela lama. É desolador.
E é revoltante, portanto, que as comunidades atingidas tenham sido impedidas de participar das negociações para o acordo de reparação, que foi discutido sob sigilo, em audiências confidenciais entre a Vale, o governo de Minas Gerais e instituições de Justiça do Estado. Embora tenham se organizado junto às Assessorias Técnicas Independentes e produzido uma Matriz de Reparação de Danos Urgentes, as comunidades foram desconsideradas e só tiveram acesso aos termos após a assinatura, no dia 4 de fevereiro.
O absurdo escancarado: famílias atingidas e entidades que as apoiam conheceram por transmissão online o resultado do acordo: R$ 37 bilhões, 31% a menos do que havia sido reivindicado a partir de estudos técnicos da Fundação João Pinheiro e do Ministério Público de Minas Gerais.
Alardeado pelo governo de Minas como “o maior conjunto de medidas de reparação da América Latina”, na ponta do lápis o acordo está longe da magnitude do impacto socioambiental e econômico causado pela mineradora. Nem em valores absolutos ele é isso tudo. Para se ter noção, acionistas da Vale receberam R$ 12,4 bilhões em dividendos e juros sobre capital próprio no final do último ano. Enquanto isso, apenas R$ 7,4 bilhões do acordo serão direcionados diretamente para os atingidos em toda a bacia do Paraopeba.
Em dezembro de 2020, a Vale se tornou a empresa mais lucrativa da América Latina. A mineradora também lidera a lista de corporações com as maiores receitas brutas. Se a empresa criminosa sai ganhando, também o governo Zema tenta sair vitorioso, já que o acordo vai bancar até mesmo ações de infraestrutura viária, como o Rodoanel em BH. Orgulhoso, o governador afirmou que “a perda dessas vidas não foi em vão”. Quase três centenas de vidas reduzidas a cifras.
E é por tudo isso que assino e apoio a ADPF 790, apresentada pelos atingidos ao Supremo Tribunal Federal na última quarta-feira. A ação denuncia o descumprimento de direitos fundamentais previstos na Constituição durante o processo de negociação e reivindica que seja garantida a participação livre e informada dos atingidos.
Assinada também por entidades da sociedade civil, junto com o PSOL, o PT, o deputado federal Rogério Correia (PT-MG) e a deputada estadual Beatriz Cerqueira (PT-MG), a ação não pede a anulação do acordo, como tem sido desonestamente propagado, mas sim a suspensão da sua homologação para a revisão dos termos. A ação exige que seja respeitada a implementação de todos os direitos já previstos e que os atingidos possam incidir sobre o acordo, incluindo a destinação dos recursos.
Deixo minha saudação a essa força coletiva que busca reverter uma decisão que envolve grandes poderes e interesses. Como deputada e cidadã, eu reafirmo: tenho lado. E é o daquelas pessoas e comunidades que tiveram suas vidas destroçadas por esse crime ambiental e precisam ser ouvidas.
* Artigo originalmente publicado no Jornal O Tempo